Por: Gisela Derpic - 15/12/2024
Colunista convidado.Ano 1994, primeiro governo de Gonzalo Sánchez de Lozada. Hora da democracia. Autêntico. Imperfeito. Com direitos humanos e garantias efetivas, com independência de poderes, pluralidade de pensamentos e atores. Livremente. A democracia pode ser aperfeiçoada através da acção política em condições de igualdade, uma parte normal do seu curso. Através dos recursos institucionais previstos em lei. No estado de direito. Longe de confusão e parafernália.
Tempo de ataque incessante à democracia com persistentes desqualificações do sistema político, exigindo perfeição. Ataque de palavra e ação, por tudo e por nada. Parte da paisagem. Do folclore. Incomoda. Tolerado. Impune. Desde o fim do ciclo militar em 1982, aumentando em tom e intensidade. Através de todos os meios disponíveis. Nas bocas e nas penas dos detratores daquilo que não leva rótulos de “popular” e “revolucionário”, um selo de fidelidade à utopia, aquele paraíso de igualdade sempre se tornando um inferno de miséria e opressão como demonstram experiências históricas concretas.
Cenário de confirmação de que para grande parte dos combatentes às ditaduras militares a democracia não era estratégica. Não. Que o seu objetivo não era a liberdade, mas a dominação. Não é mais da classe, enterrado pela queda do Muro de Berlim. Outro teve que ser inventado. E eles inventaram isso. Dominação étnica (racial, em bom espanhol), impulsionada por uma nova ditadura. A do século XXI. Levantaram-no, aproveitando a democracia que defenderiam pouco depois. Com a valiosa ajuda dos fãs. Dos ingênuos. Com a indiferença dos outros. De nós.
Potosí, segundo semestre de 2004. Seminário promovido por organizações populares da cidade para debater as três leis promulgadas naquele ano – “malditas” como as chamavam – pelo cogoverno do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), o Movimento Bolívia Livre ( MBL), União Cívica de Solidariedade (UCS) e Movimento Revolucionário de Libertação Tupac Katari (Mrtkl): Capitalização (21 de março), Participação Popular (20 de abril) e Reforma Educacional (7 de julho).
Para esta reunião foram convidados diretores de instituições ligadas à Igreja Católica; especialmente, com a Companhia de Jesus. Houve a sua oposição ao “governo neoliberal” liderado por um “agringado” Emenerrista, um empresário privado: “el Goni”. A sua condenação a essas leis estava assegurada.
Não foi assim. Ficou claro, que todos saibam, que a Lei da Capitalização não privatizou nem entregou bens públicos a empresas transnacionais. Pôs em prática um modelo de fortalecimento das empresas públicas através da constituição de empresas de economia mista com os seus bens e direitos e das contribuições de investidores privados, nacionais e/ou estrangeiros, até 50% das ações, selecionados através de concursos internacionais.
Ofereceu aos trabalhadores das empresas capitalizadas a possibilidade de se tornarem acionistas contribuindo com seus benefícios sociais. Transferiu gratuitamente as ações do Estado em empresas de economia mista a cidadãos bolivianos residentes no país e que tivessem atingido a maioridade em 31 de dezembro de 1995. Transformação económica sem precedentes.
A Lei de Participação Popular estendeu a competência dos municípios às secções municipais, tornando as instituições públicas presentes em todo o país. Atribuiu-lhes poderes e recursos para o desenvolvimento numa profunda descentralização nunca antes vista. Reconheceu, como sujeitos da gestão do desenvolvimento local nos municípios, os atores sociais pré-existentes, as comunidades camponesas e indígenas na zona rural e as associações de moradores na zona urbana, conferindo-lhes personalidade jurídica. Transformação política sem precedentes.
A Lei da Reforma Educacional incorporou pela primeira vez a educação bilíngue e reconheceu a participação dos pais como atores na gestão escolar. Transformação social sem precedentes.
O país que emergiu das leis promulgadas por “el Goni” foi outro. Com muitas luzes e algumas sombras. Sem que os seus méritos tenham sido reconhecidos pelos beneficiários. Para os “pensantes”. Prevalecendo a mentira contra.
Os frutos destas leis foram desperdiçados e pervertidos pelo projeto de miséria e opressão construído graças à deserção de uma classe média cega e medrosa. Aquele que fez uma corrente para fazer do buraco e do país uma prisão. Um projeto útil para os círculos de poder prebendários e criminosos. Aqueles que usam o pútrido porrete judicial para condenar aqueles que invejam e temem. Como “al Goni”.
Gonzalo Sánchez de Lozada deve, com razão, o reconhecimento pela sua grande contribuição ao país. Político e econômico. À sua democracia e à sua inserção nos tempos desafiadores da “terceira onda”. É uma dívida que deve ser paga principalmente por quem trabalhou com ele e graças a ele. Altos dignitários do estado e membros da tecnocracia. Deixe-os quebrar seu silêncio condenável. A menos, é claro, que eles já estejam mortos.
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