A reforma da Carta Democrática da OEA é uma necessidade urgente

Ricardo Israel

Por: Ricardo Israel - 17/02/2025


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A OEA “inicia um processo eleitoral complexo com dois candidatos que têm posições antagônicas”, informou o INFOBAE há alguns dias. Eles aspiram substituir Luis Almagro, que a meu ver teve um bom desempenho, considerando a correlação de forças dentro da instituição e o contexto externo, e seria um legado adequado empreender a necessária e urgente reforma da Carta Democrática (CD), que nasceu acompanhada de muita esperança e, hoje, de muita frustração.

O mundo mudou e a OEA precisa se adaptar, pelo menos de três maneiras. Primeiro, internamente, a Carta reflete o ambiente que existia em 2001, então a região está preparada e tem uma resposta automática aos golpes militares que abundaram na segunda metade do século passado e a situações como o autogolpe de Alberto Fujimori, mas ainda não se adapta totalmente ao que o castro-chavismo trouxe consigo, que é o assalto ao poder por dentro, geralmente aproveitando um bom resultado eleitoral para modificar radicalmente a constituição, e assim passar da democracia à ditadura.

Em um segundo sentido, as mudanças que os EUA estão vivendo com o segundo governo do presidente Trump também abrem um novo cenário para a região, então os governos devem agir e influenciar, mas até agora não há unidade nem propostas, nem ideias para aproveitar a mudança interna, no sentido de que os latinos têm uma importância política crescente tendo se tornado a primeira minoria, com capacidade de definir eleições, e os países de onde vêm não têm usado essa possibilidade oferecida pela democracia americana, como outros países fizeram histórica e com sucesso.

Em terceiro lugar, a região não se adaptou à realidade da relação entre a ditadura mãe de Cuba e a Venezuela, pois há uma ocupação real, desde a época de Chávez não só houve transferência de recursos para Havana, mas Havana e seus serviços de inteligência tomam as decisões estratégicas mais relevantes, de modo que questões deste tipo, não previstas em 2001, devem ser incorporadas à Carta como crimes gravíssimos de execução contínua.

Apesar de suas deficiências, a Carta é um bom instrumento, um dos melhores disponíveis, superior a outras instituições regionais, pois constitui uma contribuição em dois sentidos, ao definir a substância de uma democracia e ao ser um instrumento de direito internacional, até mesmo um tratado constitutivo em mais de um sentido. No entanto, ele precisa de uma atualização urgente.

Não há dúvida de que muitos duvidam dela pela falta de resultados, mas é um instrumento muito mais poderoso do que seu histórico sugere, embora por questões políticas e pela dificuldade de atingir os quóruns necessários, seu repertório de sanções não seja aplicado aos países que deixaram de ser democracias e se tornaram tiranias, em alguns casos vinculadas ao crime organizado.

Em suma, não houve vontade de fazê-lo, nem por parte dos Estados Unidos, nem por parte da América Latina ou do Caribe de origem colonial, exceto Espanha ou Portugal, mas a falta de operacionalidade não deve ser motivo para negar seu potencial, assim como a existência de crimes não deve fazer desaparecer a importância do direito penal. A Carta inovou ao afirmar que “os povos da América têm direito à democracia”, acrescentando a obrigação dos governos de “promovê-la e defendê-la”, dizendo que “a democracia é indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento”.

Dado o tempo decorrido desde seu surgimento oficial, é essencial incorporar melhores mecanismos coercitivos para seu cumprimento. De fato, ainda hoje, a Carta Democrática (CD) ultrapassa em muito as boas intenções, pois deveria ser vista como uma norma jurídica, respaldada pelo direito internacional e incorporada a muitas legislações nacionais, para que um dia possa servir de base para uma futura constituição da região, e juridicamente não difere da Carta do Atlântico que deu origem à ONU, nem da Carta de Bogotá que criou a própria OEA.

Aliás, essas palavras podem ser recebidas com ceticismo e até com sarcasmo, já que as ditaduras não diminuíram, mas aumentaram durante sua existência, e não há dúvida de que influenciou não só a falta de vontade de aplicá-la, mas também a não aplicação de sanções aos países e governos que a violam, já que não foi possível reunir os 2/3 ou 34 votos necessários, incluindo a operação de uma diplomacia petrolífera em favor das nações anglófonas ou francófonas do Caribe, contribuindo para seu fracasso, assim como foram obtidos votos para eleger um Secretário-Geral.

Durante décadas houve um desacordo contínuo com os EUA, no que se refere à responsabilidade mútua, a tal ponto que não houve nenhuma iniciativa conjunta nem no âmbito econômico, nem social, nem político, diferentemente do período anterior, com o entusiasmo que esteve presente nas primeiras Cúpulas das Américas, na década de 1990, a tal ponto que hoje a China tem uma forte presença em toda a região, sendo um investidor muito importante para muitos países, cenário ao qual Washington demorou a reagir.

Os EUA só veem drogas e imigração ilegal, mas a região também não se saiu melhor, pois pediu para não se envolver e, assim como a Europa, quis resolver vários problemas sozinha, e nada foi conseguido, piorando alguns deles, tanto que agora exige maior atenção e envolvimento.

O que pode ser feito para complementar a Carta e torná-la mais eficaz? Falamos em complementar, ou seja, somar, acrescentar. Não há recomendações para uma ruptura, já que o equilíbrio político da OEA não o permite hoje. No entanto, tudo é possível com a atual estrutura interna e administrativa da instituição, principalmente tendo em vista que o castro-chavismo mostrou a necessidade de uma atualização. Nesse sentido, os EUA falharam na Venezuela, mas a América Latina também.

Para que uma reforma tenha sucesso, seria necessário dotar a Carta de um conteúdo que permitisse sua aplicação quando houvesse violação da democracia, a exemplo de muitos outros crimes que também poderiam ser incorporados para evitar a impunidade e defender o direito à democracia, base da Carta. Nesse sentido, acredito que, para que haja impacto generalizado, bastaria que apenas um dos componentes essenciais da democracia fosse afetado. Por outro lado, um impacto se configura e pode ser classificado como sistemático se for demonstrado que ele faz parte de um plano ou política governamental.

É essencial abordar a questão das sanções internacionais, não apenas contra aqueles países que se tornaram ditaduras nos últimos anos, como Venezuela ou Nicarágua, mas também contra aqueles governos que, segundo Sánchez Berzain, desempenham um papel paraditatorial na região, pois, sendo democracias, na prática ajudam aqueles que violam os direitos humanos de seus povos, e devem receber a sanção correspondente. Além disso, vale destacar como a Bolívia se distanciou da democracia desde Evo Morales, bastando observar o número de presos políticos que possui hoje.

Que acréscimos à Carta estamos pensando que poderiam ter o apoio tanto dos EUA quanto da América Latina e Caribe e servir como um legado apropriado aos esforços feitos por Almagro para fortalecer a democracia? Nesse sentido, é preciso tipificar os crimes contra a democracia, semelhantes aos crimes de violação de direitos humanos, onde a responsabilidade é individual e abrange toda a cadeia, do torturador ao líder supremo. Estou convencido de que algo semelhante é necessário na defesa da democracia, pois por enquanto a responsabilidade é mais política do que criminal. Ou seja, como você pode aplicar essa lei não apenas para punir violações da Carta, mas também para prevenir a Lawfare?

Primeiro, a adaptação adequada ao mundo em que vivemos hoje e a maneira como a região se insere. Falo da região em geral, pois, como é público e sabido, até a democracia norte-americana tem sido alvo de muitas tensões, um processo que chamo de “latino-americanização” da sua política, dada a perda de qualidade e a polarização a que foi submetida, com responsabilidade tanto dos democratas como dos republicanos.

No que diz respeito à América Latina, o maior perigo para a democracia hoje não são os golpes militares do passado, mas aqueles governos que desnaturam a democracia, aproveitando suas liberdades para suprimir a competição política e fazer desaparecer as liberdades pessoais e públicas, não só o castro-chavismo, mas também o populismo autoritário e a crescente influência do crime organizado no governo dos países, especialmente o narcotráfico, como é o caso da Venezuela de Maduro, onde todos esses elementos se somam.

Em segundo lugar, por se tratar de um documento vinculativo e não de uma mera recomendação, ao estabelecer sanções, estas devem ser incorporadas de forma mais clara e decisiva, seja na própria Carta ou em um regulamento. Em um extremo está o roubo de uma eleição, como ocorreu na Venezuela, mas há também outras situações menos conhecidas que também devem receber sanções automáticas, já que o princípio geral a ser salvaguardado é que, havendo um sistema baseado em Estados, os governos e suas autoridades devem ser punidos. Em outras palavras, o sistema atual deve ser fortalecido de tal forma que não haja impunidade para crimes contra a democracia.

Em terceiro lugar, a democracia não é apenas um método para chegar ao poder, não são apenas eleições, mas a forma como o poder é exercido é igualmente relevante, por isso é inaceitável que a Carta não seja respeitada hoje, nem que governos e governantes que a violem não sejam punidos, às vezes porque não houve vontade ou às vezes simplesmente porque os 2/3 não puderam ser cumpridos.

O que pode ser feito? Como o bem maior é o binômio respeito à democracia e aos direitos humanos, o que deve ser feito é reduzir esses quóruns elevados, pois há a já mencionada distorção do apoio que recebem daqueles governos que, sem serem ditaduras, os favorecem por sua ação ou omissão, o que na prática ajuda a que exista a impunidade.

A democracia é uma só e, em geral, aqueles que lhe dão um sobrenome não o são, e nesse sentido, a Carta inclui com sucesso cinco elementos essenciais: o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais; acesso ao poder e seu exercício sujeito ao Estado de direito; a realização de eleições periódicas, livres e justas, baseadas no sufrágio universal e secreto, como expressão da soberania do povo; o regime plural de partidos e organizações políticas; e a separação e independência dos poderes públicos.

Ou seja, exatamente o que é violado pelos regimes que cometem crimes contra a democracia diariamente.

Em quinto lugar, o que pode ser feito para evitar a manifestação da síndrome do sapo cozido, em que as forças democráticas ficam adormecidas e, diferentemente de um ataque ao poder, os países lentamente se acostumam à perda de liberdades e à transição para uma ditadura? Daí a comparação com um sapo que é cozido e não pula para fora da panela, pois já se acostumou à água. Ninguém lhe deu um aviso para acordá-la também.

Nesse sentido, uma proposta na direção certa surgiu no fórum “Em Defesa da Democracia”, organizado pelo Instituto Interamericano para a Democracia em 2021, onde o ponto 4 da proposta de Coral Gables solicita que a OEA “emita um relatório anual sobre o estado da democracia em cada um dos países membros em aplicação dos elementos essenciais contidos na Carta Democrática Interamericana”. Este relatório serviria como um sinal de alerta para países que estão perdendo sua democracia, para os quais talvez seja necessário um sistema de semáforos, incluindo amarelo e vermelho, para a luta de ideias e um debate público oportuno para defender a democracia.

Em sexto lugar, devemos acrescentar também que a Carta deve fazer parte de um esforço para torná-la importante como uma atividade central da educação para a democracia, por isso não deve ser apenas um conhecimento avaliável do sistema educacional, mas também um objetivo educacional, por isso deve aparecer nas diferentes etapas da escolaridade.

Assim, na reforma da Carta, deve-se também utilizar uma linguagem que permita que ela seja acessível não apenas aos advogados, mas também que alcance os setores mais amplos. A este respeito, dois exemplos. Primeiro, um texto para ser lido pelas mais amplas camadas da população e nas redes sociais é o preâmbulo da Constituição dos EUA, aquele que usa pela primeira vez palavras como “Nós, o Povo”, e que pode ser estudado (até mesmo memorizado) por todo o sistema educacional do país.

Um segundo exemplo poderia ajudar a garantir que, como subproduto dessa reforma, surja uma Declaração Universal para a Democracia que, com uma linguagem acessível, possa ser entendida por todos os estudantes.

Nesse sentido, há um exemplo que perdeu relevância, mas é extremamente importante e que serve a esses propósitos. O que me vem à mente é a conhecida Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia Geral da então nascente Organização das Nações Unidas, um documento notável que em apenas 30 artigos contém o que ainda são seus princípios básicos, e seria bom imitá-lo.

O que chama a atenção neste Documento é que ele é tão claro que todos o entendem, de modo que pode ser ensinado em todo o mundo por diferentes sistemas educacionais, marcando um antes e um depois ao fornecer um horizonte comum que nos permite diferenciar onde esses direitos são violados e onde são respeitados.

Este exemplo serve como referência à situação atual da democracia, que atravessa um período complicado na região e no planeta, e daí a necessidade e oportunidade de uma Declaração Universal para a Democracia, pelo menos nas Américas, como complemento à Carta.

Sétimo, como há diferenças entre as constituições nacionais, é essencial reforçar a incorporação do ordenamento jurídico das Américas a elas por meio de critérios claros e explícitos, essenciais para a defesa coletiva do direito à democracia, destacando que há um conjunto de obrigações jurídicas internacionais com a democracia, incorporando, por exemplo, na redação do artigo 19, o conteúdo dos artigos 3 e 4, bem como o fato de que para que não se aplique somente aos golpes de Estado, nesta nova etapa o conceito de crimes contra a democracia passa a ser central.

Em oitavo lugar, deve-se incluir uma lista de critérios objetivos para determinar um impacto sério na ordem democrática, no sentido de critérios claros e expressos, como eleições periódicas e separação de poderes, ou seja, elementos-chave do que se entende por democracia. Por outro lado, a redação atual, além de não esclarecer o que significa ruptura da ordem democrática, carece de elementos ou critérios para determinar quando uma afetação à ordem democrática reúne o requisito de ser grave, o que torna necessária a incorporação de critérios de interpretação, como, por exemplo, que a afetação seja sistemática e generalizada, critérios que provêm tanto do direito penal internacional, onde são utilizados para caracterizar crimes contra a humanidade, quanto da esfera jurisdicional, que exige que a violação dos direitos humanos seja sistemática ou generalizada.

Por fim, outra reforma deveria ser que não apenas os governos pudessem solicitar a aplicação da Carta, mas que outros poderes, como o legislativo ou o judiciário, pudessem fazê-lo em igualdade de condições, além de abrir a possibilidade para que organizações de cidadãos e até mesmo indivíduos o fizessem, como é o caso da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado, para dar-lhe ainda mais força.

@israelzipper

-Mestre e Doutor em Ciência Política (Universidade de Essex), Bacharel em Direito (Universidade de Barcelona), Advogado (Universidade do Chile), ex-candidato presidencial, Chile, 2013


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