Por: Beatrice E. Rangel - 22/10/2024
Para a maioria dos analistas da realidade latino-americana, o século XXI estava destinado a ser o palco da ascensão e consolidação de governos autoritários com características diferentes daqueles que assolaram a região no século XX. Estas características resumem-se no confisco da soberania; a captura de recursos económicos; a pilhagem do Estado e a destruição do quadro institucional em que se sustentaram as experiências democráticas iniciadas durante a década de 1980. Esses regimes foram definidos como Autocracies Inc. pela perspicácia de Anne Applebaum. Eles têm sido o gatilho para um movimento imperceptível, mas firme, da sociedade civil em muitos países, destinado a redefinir os pilares das repúblicas latino-americanas.
Este processo é mais visível na Venezuela, mas não demora muito a emergir no México, na Colômbia e no Brasil. Porque nestas nações as instituições democráticas enfrentaram graves dilemas que as levaram ao limite do colapso democrático. No México, a tentativa até agora bem-sucedida liderada por Amlo de devolver os ponteiros do relógio da história a 1929, quando Plutarco Elias Calles fundou o Partido Revolucionário Institucional, tem desafios a consolidar. O PRI estabeleceu o que Mario Vargas Llosa descreveu como “a ditadura perfeita”, uma vez que houve eleições, as pessoas puderam expressar discretamente a sua inclinação política e o estado mexicano forneceu serviços de educação, saúde e transporte com qualidade e custos razoáveis. Em troca, os mexicanos deviam lealdade ao PRI como mecanismo de mobilização política e a vontade do PRI ou da sua liderança sênior era a lei no México. Mas acontece que a experiência não tem hipóteses de ser consolidada porque trinta anos de comércio livre com os Estados Unidos e o Canadá criaram uma classe média com interesses diferentes daqueles da liderança do PRI no século XX. Portanto, a sociedade civil mexicana, à qual pertencem muitos dos actualmente filiados no partido Morena, não aceitará voltar ao status quo antes de Ernesto Zedillo, que foi o arquitecto das instituições democráticas. Portanto, na medida em que a senhora Sheinbaum se afasta do caminho de intensificação da proximidade com os Estados Unidos, na mesma medida as classes médias mexicanas lhe virarão as costas e um período de construção democrática começará no México.
Na Venezuela, a sociedade civil que nunca baixou as bandeiras democráticas encontrou – depois de uma longa provação – a liderança necessária para se livrar do regime pária que mantém o país como refém. E com Maria Corina Machado na linha da frente, a sociedade civil venezuelana prepara-se para recriar a democracia com novas bases que lhe permitam restabelecer os equilíbrios entre os poderes e a supervisão da sociedade civil às execuções dos governos. Cuba está desmoronando. Há uma semana que não tem eletricidade porque a rede de geração e distribuição entrou em colapso devido à má manutenção. A nação que descobriu o sistema explorador de caridade internacional. Apresentando-se como o David que derrotou o Golias encarnado pelos Estados Unidos, acaba de descobrir que 25% dos cubanos residem em Miami e que o resto da população já estaria instalada na Rua 8 se tivessem liberdade para o fazer. Consequentemente, nem mesmo o seu próprio povo está impressionado com o feito anti-ianque.
Na Colômbia, a Petro consegue fortalecer as instituições democráticas atacando-as diariamente com propostas para as desfazer. Desta forma, fortaleceu a já vibrante sociedade civil colombiana que não tem dado trégua a nenhum líder que tente desviar-se do canal democrático.
Na Bolívia, duas gangues transnacionais do crime organizado que apoiam Evo Morales e Luis Arce lutam pelo controle do poder. No processo, estão prestes a lançar as bases para uma guerra civil que poria fim à actual disputa com um custo verdadeiramente horrível em vidas.
No Brasil, o sufocante controle autoritário do Estado central gerou anticorpos na sociedade civil que se prepara para apoiar uma avalanche libertária nas próximas eleições.
Em suma, a região latino-americana prepara-se para realizar um feito de construção democrática sem precedentes na sua história. E talvez este processo seja perturbador para as elites latino-americanas que sempre fizeram pactos com o poder em detrimento da democracia.
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